Na Coreia do Norte e o dia em que me foi servido cão



Separadas desde o final da primeira metade do séc. XX, a Coreia do Norte e a Coreia do Sul partilham séculos de história. Nos dias de hoje não podiam ser mais diferentes a nível cultural, social e económico, mas os pontos em comum são perceptíveis em vários aspectos do dia a dia, assim como no folclore, como é o caso das músicas e vestes tradicionais, mas também na gastronomia. A esse nível, e entre os muitos pratos típicos, destacam-se (os bem conhecidos) Bibibamp e Kimchi, mas também Boshintang, uma sopa feita à base de carne de cão. 

Existem vestígios do consumo deste tipo de carne na península da Coreia desde o neolítico, assim como datam de há vários séculos referências literárias a esse respeito, sendo por isso indiscutível a relevância desta proteína na história do povo coreano. 



A utilização da carne de cão, na Coreia do Sul, começou a ser reprimida de uma forma mais vincada pela comunidade internacional pela altura dos Jogos Olímpicos de Seul, em 1988. Ainda assim, mesmo na Coreia do Sul, um dos países mais desenvolvidos e industrializados, este tema é controverso e divide gerações: as mais novas que cada vez mais adoptam os hábitos da cultura ocidental e uma postura pró-animal e as gerações mais velhas, que sempre olharam para a carne de cão com a normalidade com que um ocidental olha para a carne de vaca. 

Na Coreia do Norte o constrangimento imposto pelos princípios culturais ocidentais é inexistente, o bem estar animal é o menor dos problemas num país onde 50% das crianças nascidas nos anos 80/90 sofreram de nanismo, uma mal formação originada pela fome extrema. Em 2014, quando realizei esta viagem à Coreia do Norte, pude perceber que a fome é ainda uma constante. Ainda assim, a carne de cão é maioritariamente consumida pela classe alta da sociedade, sendo considerada uma carne que promove a vitalidade.


Quando nos propomos a emaranhar numa cultura tão diferente da nossa temos de ter a disponibilidade para analisar em perspectiva tudo o que nos é estranho culturalmente, sem etnocentrismos, através dos olhos do outro - se para mim um bife é apenas um dos elementos constituintes da francesinha, para um hindu representa parte de um icon sagrado. A gastronomia é, portanto, parte integrante do património cultural e identitário de uma sociedade. Assim sendo, que direito tem um outsider de criticar o consumo de carne de cão num país como a Coreia do Norte, um dos países mais distantes de nós a nível cultural? 



Foram precisamente estes pensamentos que me assolaram certo dia, em Kaesong, num almoço tradicional em que me foi servido um caldo de carne de cão. Antes de primeira colherada, introspectivo e com um misto de emoções, pensava para mim próprio que não podia permitir que a minha bagagem cultural me impedisse de emaranhar numa cultura que tanto esforço fiz para conhecer. Foi, por tudo isto, um momento bastante marcante.

E quanto ao sabor, neste caso o menos importante, situa-se entre carne de caça e a de porco. 

3 comentários:

  1. Adorei o teu post. E que palavras cheias de sentido! As a foreigner, I can not pass judgement. Algo difícil, mas tão certo...

    Estou a dias de ir à Coreia do Sul e não vou com o "objetivo" de comer carne de cão, mas se por acaso surgir essa oportunidade na ementa, irei provar. Por ser algo tradicional e algo que, em princípio, nunca comi ou comerei noutro sítio. Um abraço!

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    1. Obrigado Filipe! :)

      Vais adorar a Coreia do Sul! É virtualmente impossível encontrares restaurantes que sirvam carne de cão, se não estiveres a procurar. Não publicitam, porque como disse são ilegais, e nem sequer na ementa têm essa referência. São mal vistos actualmente pela maior parte da população.

      Depois tenho de te dizer um sítio que não podes deixar de visitar, e um petisco que é obrigatório provares ;)

      Um abraço.

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    2. Ah, Ok! Eu pensei que era reprimido o consumo/venda, mas agora já percebi! Sendo assim, acho que não vou provar. Mas fiquei curioso com o petisco! Tens de me contar! ;)

      Um abraço!

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