No Peru, às voltas com o Ceviche

Ceviche no Maido, Lima - 8º melhor restaurante do mundo

Da banca de mercado à alta cozinha, o ceviche pode mostrar-se de diversas formas e feitios. Ao contrário do que a simplicidade do seu aspecto pode induzir, este prato peruano pode ser de uma enorme complexidade.

Num país com costa para o pacífico e fértil em peixe, ceviche é o prato peruano mais consumido internamente, assim como o mais exportado. A sua origem é indefinida mas são várias as lendas e histórias que se contam à volta do seu surgimento. Certa teoria aponta para a origem pré-hispânica, em que se utilizavam outras frutas ácidas (os citrinos chegaram pelas mãos dos espanhóis) para cozinhar peixe. Outra versão bem curiosa aponta para origem criola. Os escravos, que pouco mais tinham que entranhas de galinha para comer, cozinhavam-nas com o ácido cítrico da lima. Menos conhecidos além fronteiras, os ceviches de pato e de frango são bastante comuns em várias regiões do Peru. 

                         Ceviches servidos como entrada incluída no menu do dia, ambos em Paracas
Cevicheria que se preze abre apenas para almoço, encerrando portas pelas 16/17h. Só o turista que nada conhece da tradição gastronómica peruana se lembra de o comer ceviche ao jantar. Até à algumas décadas era difícil manter a frescura e qualidade do peixe, devido à falta de equipamento de refrigeração. Tradição é tradição, e nem com o aparecimento dos frigoríficos o hábito se desenraizou - dizem os peruanos que ceviche à noite cai mal. 


Das mil e uma receitas existentes para a confecção do ceviche, na sua base está o peixe, a lima, a cebola roxa, os coentros, sal e aji (chili). 

À esquerda, mãe e filho trabalham numa banca de ceviche no mercado de San Blas, Cusco // À direita, ceviche de ouriço do mar, ceviche misto e ainda um copo de leite de tigre, Cevicheria Beto, Lima

Ceviche que se preze tem de ser picante, e no que respeito diz ao aji as possibilidades são imensas. No norte os mais utilizados são limo (o mais comum), mochero ou cerezo, no sul e nos Andes rocoto, na selva amazónica charapita ou ayuyo. A utilização de aji amarillo, um dos mais utilizados na gastronomia peruana, é também bastante comum nesta receita. Cada cevichero opta por aquele(s) que acha ser(em) o(s) mais adequado(s), tendo em conta o nível de picante e o sabor que pretende obter.

Das mãos da mãe e da criança da foto anterior, um dos melhores ceviches que comi! Mercado de San Blas, Cusco. 

Quanto ao leite de tigre, a base de todo o ceviche e de onde resulta a grande complexidade (e possibilidade) de sabores, é feito à base de sumo de lima e caldo de peixe (e só no fumet é possível obter uma diferente variedade de sabores) aos quais se juntam outros tantos ingredientes numa "infinita" possibilidade de combinações. Mais uma vez, cada cevichero tem a sua técnica e forma de o confeccionar. 

Na cevicheria Sonia, em Lima /  Ceviche amazónico com peixe de rio e yuca, Puerto Maldonado

Quanto à guarnição do ceviche, são várias as possibilidades. O milho, em diversas formas, crocante e/ou em maçaroca é comum em todo o Peru, assim como a imprescíndivel batata doce cozida, que contrabalança com as suas notas adocicadas a acidez característica do leite de tigre. Quanto à yuca (mandioca) é comum servir-se na região da amazónia. No norte, o feijão também pode aparecer pelo prato, bem típico desta zona. Já o abatate é uma adição mais recente que pessoalmente não me convence.

     Ceviche de inspiração nortenha com chicharrón de pota, feijão, abacate, algas, milho e batata doce. 

Como toda a gastronomia, também o ceviche se encontra em constante evolução. Há umas décadas era comum ver-se o peixe cozinhado no leite de tigre por várias horas, apresentando-se no prato com a carne bastante cozida. Actualmente, muitas cevicherias optam por marinar o peixe por poucos minutos ou apenas misturando-o na altura de servir ao comensal.

Independentemente dos acompanhamentos e da forma de preparar o leite de tigre, pretende-se que sejam trabalhados o mínimo possível e, por isso, numa cevicheria tradicional nunca veremos, por exemplo, um puré ou um crocante de batata doce. Infelizmente, em Portugal, é a única coisa que se vê. Não conheço por cá cevicheria ou restaurante peruano que tenha em carta uma versão próxima da tradicional, sem adulteração de texturas.

Ceviche puro da Cevicheria, Lisboa, Portugal. Foto gentilmente cedida por Duartecalf

Introduzir o ceviche numa diferente cultura gastronómica, dando-o a conhecer unicamente numa versão modernizada não faz jus à riqueza deste prato peruano que, já de si, é tão complexo e profundo. A inspiração pode estar lá, mas perde-se toda uma narrativa de texturas e sabores.

Uma coisa é certa, com purézinhos, telhas e outras coisas afins, os pratos sempre ficam mais agradáveis aos olhos... e à fotografia.

3 comentários:

  1. João,

    No restaurante Segundo Muelle, em Lisboa, apanhei ceviches com batata doce cozida! Eram bons, não excecionais.
    Por acaso nao tirei foto... fez-me falta o puré :)

    Abr
    Duartecalf

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    1. Viva Duarte! Bom saber disso, a ver se faço uma visita. Mas fiquei na dúvida, sentiste a falta do puré pelo que isso representa a nível estético (e daí não teres tirado a foto), ou porque realmente preferes a batata doce nessa textura? :)

      Abraço!

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    2. Olá João,
      Estava a brincar com a referência ao puré... Não tirei a foto porque era um prato comunitário, rectangular, que era difícil de enquadrar! Gostei da batata doce cozida.
      Abraço

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